segunda-feira, 26 de outubro de 2009

E, já um mês é passado...




12/08/1911 ----- 25/09/2009


MARIA JESUS


Noventa e oito anos
são uma vida inteira
de enganos, desenganos
e ainda muita canseira.

Órfã de pai, muito cedo,
não chegou a ser criança
e dos irmãos, sem medo,
era ela a sua esperança.

Quase não foi à escola
mas aos irmãos ajudou,
preparava-lhes a sacola
e as letras lhes ensinou.

E assim foi crescendo,
sem tristeza ou desdém.
Aos irmãos foi provendo
e fazendo de mãe também.

Chegada a altura, casou
na igreja de Santa Maria.
Foi aí que Deus abençoou
os noivos, José e Maria.

Passado menos de um ano
eis que um rebento chegou.
Aquele que seria meu mano
e que Francisco se chamou.

A vida, dura, continuava,
dura, ainda, cada vez mais
e aquela boca já chamava
José e Maria, de seus pais.

E, quase analfabeta, Maria
o filho à escola levava.
Já cansada, ao fim do dia,
as letras ela lhe ensinava.

Cresceu o primeiro rebento
e mais um rebento chegou,
a vida ganhou novo alento
e, a este, João lhe chamou.

Mais uma boca para comer
e continuava dura a vida.
Mas o que havia de fazer?
Não se dava por vencida!

Mas a vida naquela terra,
ainda que o ar fosse puro,
os tempos eram de guerra
e era bem negro o futuro!

O “Chico” a escola acabou!
Ficar na terra era um dó!
Então, aos 10 anos, rumou
para junto dos tios e avó.

10 anos, ainda criança,
já enfrentava a realidade
e criava a sua esperança
num escritório da cidade.

E era assim, antigamente,
desculpem-me que insista,
aquele dez réis de gente,
sonhava ser contabilista!

Os pais, nele bem pensaram
e também no pequeno, irmão.
A trouxa eles embrulharam,
fizeram rumo ao Algueirão.

Com esperança no porvir,
da vida levando açoite,
sua desdita foi, servir
desde manhã até à noite!

A dias, ou a lavar roupa,
eram os ossos do ofício.
Se a vida não lhos poupa,
ela aceita o sacrifício!

Eis então chegada a hora
do filho mais novo estudar
e, como antes, também agora
lhe coube as letras ensinar.

E enquanto a roupa lavava,
ali na ribeira de Fanares,
ela, paciente, lhe ensinava
os seus trabalhos escolares.

Primeiro era a tabuada,
da soma à multiplicação,
depois da roupa lavada
ainda faltava a lição.

Como a qualquer pessoa,
a vida dava mais um nó.
O outro filho, em Lisboa,
vivia com os tios e a avó.

E foi então que, em Lisboa,
sem que fosse fácil a vida,
veio, enfim, uma coisa boa.
A família, de novo, reunida!

Não durou muito a vida boa.
Mudou para a rua das Trinas,
mesmo em plena Madragoa,
num típico bairro de varinas.

A vida ainda não lhe sorria
mas, houve que compartilhar
com uma família, algarvia.
E que bem se haviam de dar!

O mais velho, na vida militar,
mais cuidados necessitava
e, com o mais novo a estudar
tudo mais se complicava.

A vida nem sempre é direita
e mais ainda havia de mudar.
O mais novo tinha à espreita
oficina, onde ir trabalhar.

Veio tempo e tudo mudou,
tudo ficou muito melhor,
Francisco o curso acabou.
Era agora, senhor doutor!

João, esse, continuava
como melhor lhe convinha.
E, assim, ele embarcava
ao serviço da Marinha.

O que a seguir aconteceu
e mais alguma coisa mudou,
foi que o Cupido apareceu
e o Francisco se casou.

Pôde, então, mais tarde,
distribuir seus afectos
e disso fazendo alarde,
aos, então, seus netos.

Mas foi curto esse alento
na sofrida vida de Maria.
Foi em grande sofrimento
que sua mãe lhe falecia.

Um mal pode ter cura!
Quando? Só Deus sabe!
Se o bem nem sempre dura,
não há mal que não acabe.

O filho mais novo, João,
não foi como o primeiro.
Escolheu outra profissão
e foi, senhor engenheiro!

Tal como o filho primeiro
o João tomou asas, voou,
tornou-se menos caseiro
e, de pronto, se casou.

O sonho comanda a vida,
como bem dizem os poetas
e, foi quase de seguida,
nasceram mais duas netas.

Mas o destino lhe guardou
ainda mais um mau momento
e Deus o marido lhe levou
depois de algum sofrimento.

Se para outros, mortais,
a vida passava a voar,
para ela, cada vez mais
dizia, andava devagar.

Era bom de ver a ternura
quando vieram os bisnetos!
Agora, vida menos dura,
aumentavam seus afectos.

Deus, nossas vidas provou
ter, sempre, em suas mãos!
Foi, então, que Ele levou,
primeiro, seus dois irmãos.

E enquanto pedia a Deus
que sua vida consumisse,
trazia à memória os seus.
Já lhe pesava a velhice!

E Deus fez-lhe a vontade,
tal e qual como ela quis,
num lar de 3ª idade
e onde se sentia feliz!

Estes versos, duma vida,
encerram grande verdade.
Feitos, assim, de corrida
não contam, dela metade!

Humildemente foi nascida,
e até que Deus a chamou,
aprendeu as letras da Vida
e aos filhos lhas ensinou!

E sonhei que Deus me dizia
-:E à minha direita eu pus
nossa recém-chegada, Maria,
pois ela é também, de Jesus!

Passou uma noite e um dia
e o Senhor, lá de cima,
fazendo a vontade a Maria,
levou-lhe Laura, sua prima.

Minhas lágrimas, não viste,
porque eu os olhos secava.
Meu coração, não o ouviste,
mas era ele quem chorava!

Com olhos rasos de água
e meu coração submerso,
eu afogo a minha mágoa
neste meu último verso!


Repousa em paz,

teu filho, João

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

25 de Setembro de 2009

Enquanto não sou suficientemente capaz de prestar a minha homenagem a minha mãe, aqui lhe deixo algumas palavras que gostaria de lhe dizer e que outros terão tido arte e engenho para fazê-lo

Mãe

Mãe:
Que desgraça na vida aconteceu,
Que ficaste insensível e gelada?
Que todo o teu perfil se endureceu
Numa linha severa e desenhada?

Como as estátuas, que são gente nossa
Cansada de palavras e ternura,
Assim tu me pareces no teu leito.
Presença cinzelada em pedra dura,
Que não tem coração dentro do peito.

Chamo aos gritos por ti — não me respondes.
Beijo-te as mãos e o rosto — sinto frio.
Ou és outra, ou me enganas, ou te escondes
Por detrás do terror deste vazio.

Mãe:
Abre os olhos ao menos, diz que sim!
Diz que me vês ainda, que me queres.
Que és a eterna mulher entre as mulheres.
Que nem a morte te afastou de mim!

Miguel Torga, in 'Diário IV'


Para Sempre

Por que Deus permite
que as mães vão-se embora?
Mãe não tem limite,
é tempo sem hora,
luz que não apaga
quando sopra o vento
e chuva desaba,
veludo escondido
na pele enrugada,
água pura, ar puro,
puro pensamento.
Morrer acontece
com o que é breve e passa
sem deixar vestígio.
Mãe, na sua graça,
é eternidade.
Por que Deus se lembra
— mistério profundo —
de tirá-la um dia?
Fosse eu Rei do Mundo,
baixava uma lei:
Mãe não morre nunca,
mãe ficará sempre
junto de seu filho
e ele, velho embora,
será pequenino
feito grão de milho.

Carlos Drummond de Andrade, in 'Lição de Coisas'