terça-feira, 24 de novembro de 2009

E, hoje, dia 24 de Novembro, faz anos que o "Angola" bateu no fundo... (parte I)


O "Angola" encalhado, defronte da Ilha de Moçambique


Depois de ter saído de Lisboa, no dia 27 de Outubro, o “Angola” era o único navio de passageiros, da Marinha Mercante nacional, que passaria a quadra do Natal em Lisboa.
Era e não foi! Era sorte a mais!
Porque, no dia 24 de Novembro, quando o navio se preparava para fundear defronte da Ilha de Moçambique, aconteceu aquilo que ninguém esperava. Encalhou!
A viagem começou, e nada fazia prever que não decorresse normalmente. Pois bem, logo no início se apossou do pessoal uma ansiedade que só visto. Toda a gente queria saber a que velocidade íamos e se estávamos a ganhar tempo ou não. Ainda não tínhamos chegado a Luanda e já levávamos algum avanço. Era uma obsessão diária! Já fazia nervos e eu e alguns outros íamos dizendo para não deitarem foguetes antes da festa e que acalmassem pois ainda faltava muito tempo e era preciso era tudo correr normalmente. Pois foi, só que nesse fatídico dia 24 de Novembro, ao chegarmos à Ilha de Moçambique, metemos piloto e de imediato ficámos encalhados. O comandante Mariano armado em profundo conhecer do local, assim que o piloto pôs pé no navio, mandou seguir o navio e quando o piloto chegou à ponte de comando só teve que constatar o facto e dizer: - Senhor Comandante, estamos encalhados! Ao que consta, umas bóias de sinalização tinham sido deslocadas da posição anterior e o Comandante não tinha tido isso em atenção! Era, isto, 08h.10min e as manobras para desencalhar o navio duraram até cerca das 13.00h. Eu tinha saído de quarto às 04.00h, tinha-me deitado cerca das 06.00h e às 08h.10min (confirmei depois) acordei com uma trepidação do navio que eu julgava serem as manobras de fundear, espreitei pela vigia do meu camarote, vi o mar, estava normal e deitei-me de novo. Dormitei um pouco, sempre com a trepidação como companhia e às 10.00h o criado preto, Abudo Macussete, veio acordar-me dizendo-me: - Sr. João, acorda para ir para baixo. O navio está encalhado! Rapidamente associei os factos e disse: Ah, sim? Não há problema, mais para o fundo já não vamos! Levantei-me e aí vou eu para a Casa das Máquinas, para manobrar as máquinas. O pessoal do quarto que estava de serviço nunca fazia as manobras pois tinha que estar atento a toda a instalação. Assim, as manobras eram feitas pelo pessoal do quarto que entrava de serviço nas duas horas seguintes, ou nas duas horas antes da hora das manobras. Eu, como entrava às 12.00h, lá tive que ir render os outros. Enquanto íamos parando e arrancando com as Máquinas, íamos ouvindo o barulho dos pedregulhos que os hélices, ou os seus restos, iam arrancando do fundo do mar e faziam bater no costado do navio. Era uma coisa linda de ouvir! E de imaginar! Pelas 13.00h lá se conseguiu safar o navio. Restava saber em que condições ele estaria. Não esperávamos nada bom e o Natal e o Ano Novo, já eram! No mínimo, era a desilusão geral! Punha-se agora outra interrogação. Como é que estaria o fundo do navio. Numa primeira observação, a zona de Ré era a que se apresentava pior, os tanques do duplo fundo tinham sofrido bastante, os rebites aluíram, havia entrada de água salgada e o piso do túnel subiu, devido à subida dos tectos dos referidos tanques. Havia água salgada nalguns tanques de combustível e no pique tanque, de água doce, a vante. No entanto, o navio flutuava e as máquinas trabalhavam, só não sabíamos em que condições. Depois da descarga da mercadoria, levantámos ferro e rumámos a Nacala, só para descarregar carga, após o que seguimos para Porto Amélia onde haveria mergulhadores da Marinha de Guerra que poderiam avaliar os prejuízos no casco do navio. As águas de Porto Amélia eram muito límpidas e calmas, dado que o porto ficava numa baía, a baía de Pemba, a 3ª maior do mundo. Durante esta viagem, Ilha de Moçambique / Nacala / Porto Amélia, deu para ver que as máquinas estavam a aquecer muito e a velocidade do navio era bastante abaixo do normal. A conclusão da vistoria ao casco confirmou que havia alguns rebites aluídos, o que provocava entradas de água nos tanques e os hélices estavam muito danificados, as pás pareciam folhas de couve. Mais descansados, mas não muito, “ao pé coxinho”, rumámos a Lourenço Marques. Já não fomos à Beira porque além de já não irmos carregar nada, a água era sempre muito barrenta e não daria para observar o casco novamente. Em Lourenço Marques tudo ia ser decidido. Onde seria a reparação, onde ficaria o pessoal, etc. Havia várias hipóteses de reparação, no Cabo, em Durban, Lisboa ou Newcastle, onde o navio tinha sido construído. O representante da Administração da CNN, comandante Sales Henriques, deslocou-se a Lourenço Marques e ficou decidido que faríamos uma reparação sumária em Durban e a reparação geral seria feita em Lisboa, na Lisnave. Em Durban, o casco seria reforçado, longitudinalmente com umas (penso que foram 2) vigas, tipo ”skys”, uma espécie de mais duas quilhas. O pessoal, criadagem e afins, de apoio aos passageiros, ficariam em Lourenço Marques, a passar férias de “papo para o ar”, penso que na Inhaca, uma ilha na entrada do porto. A tripulação, propriamente dita, lá tinha que ir com o navio, claro, e pela parte que nos tocava continuávamos a correr quartos em vez de trabalharmos 24 horas e descansarmos 48, como era normal quando estávamos em Lisboa. Chegámos a Lourenço Marques no dia 29/11 e depois de aliviado o navio de toda a carga, saímos para Durban no dia 03/12, onde após uma viagem bastante baloiçada, uma vez que o navio ia bastante leve e o mar estava um bocado alterado, chegámos no dia seguinte. Neste trajecto passámos pelo “Quanza”, em sentido contrário, e era-nos dado observar as vagas que batendo-lhe na proa iam atingir a ponte de comando. Eu cheguei a dizer que se o navio, leve e com aquele temporal, tinha chegado a Durban, também chegava a Lisboa!
Cabe aqui, fazer uma ligeira pausa nesta narrativa e contar o que se passou comigo e com a minha comunicação à família quanto à ocorrência do encalhe. Houve alguma falha da minha parte, mas isso deveu-se também muito a que as comunicações não eram muito fáceis. Primeiro eu não dei tanta importância ao caso como ele veio a ter na comunicação social, em Portugal, e junto da minha família, em particular. Para mim era apenas um acidente de percurso, tudo corria devidamente controlado e eu não queria alarmar a família. Por outro lado, pensava escrever para casa quando chegasse à Beira porque só aí eu podia ir aos Correios. Afinal, não fizemos escala na Beira e tudo se atrasou. Só poderia escrever de Lourenço Marques e com isso já lá iam 5 dias. Nunca pensei em enviar telegrama porque achava que isso iria alarmar quem o recebesse e não iria explicar o sucedido. Eu desconhecia o que era noticiado em Portugal. Pensei que até fosse de algum modo escondida a ocorrência, mas não foi. Assim, quando cheguei a Lourenço Marques, tinha uma carta do meu irmão a “descascar” e a basear-se apenas em informações da CNN e que nunca sabiam se seriam correctas. Mesmo assim, não consegui responder de Lourenço Marques porque ou seria fim de semana ou o feriado de 1 de Dezembro e os Correios estavam fechados. Estava tudo contra mim e só consegui escrever, para casa, já em Durban. 10 ou 12 dias depois do acidente! Foi obra!
(Continua)