Muitos dos que hoje deliram com os brinquedos
electrónicos, não sonham sequer com o que fazia sonhar a miudagem de
antigamente. Mais propriamente, vou falar da década de 40 do século passado.
Eu morava no Algueirão, que também não sonhava ser
a urbe dos nossos dias. As nossas brincadeiras eram fruto da imaginação de cada
um e do aproveitamento do que outros, já anteriormente tinham pensado e posto
em prática.
Assim, além dos jogos da bola, das corridas de
arcos com a gacheta em arame (guiador), dos jogos de berlinde (com os
“abafadores”, o “contra mundo” e o “papa”), o “par ou ímpar” com os bonecos da
bola,
a “revirada” (suponho que era assim que se dizia) também com os bonecos da
bola ou as estampas das caixas de fósforos, e no Carnaval, as “bisnagas” eram improvisadas com dois pedaços de cana, em que um, de menor diâmetro, servia de êmbolo dentro do outro.
Mas havia sempre mais qualquer coisa para
descobrir. Coisas mais sossegadas, tais como jogos de mesa, cartas, dominós (o
normal e o de figuras) e vários jogos da “Majora”.
Ainda não havia “Lego” mas
havia peças coloridas, em madeira, com as quais se faziam algumas construções.
Nunca tive nada disto e recordo-me que delirava só de olhar para os restos duma
velha tampa de caixa da “Meccano”, o supra sumo das construções daquela altura,
tal como os comboios “Marklin”. Isto era só acessível a bolsas bem fornecidas e
eram bem o entretenimento de muitos adultos que nem quase deixavam a miudagem
tocar neles.
Posto isto, e como as nossas brincadeiras tinham
de ser por nós criadas, aconteceu que eivados do fervor desportivo e
nacionalista, também nós quisemos, orgulhosamente, comemorar os feitos da
equipa nacional de hóquei em patins. Se bem o pensámos, melhor o fizemos e o
João Manuel deu a ideia de que uns
primos, que moravam ali para os lados de Sacotes, estariam na disposição de vir
ao nosso terreno de jogo, em plena rua poeirenta, pois claro. O hóquei não
seria em patins e
uns calçariam sapatos, outros botas e por mero acaso não
havia nenhum descalço. E éramos só cinco. Eu, o João Manuel, o Lino (morávamos
na que é hoje a Rua de Santo Estêvão) e dois miúdos da rua onde se realizaria
tão importante evento desportivo (hoje dita de Rua de São João). Acresce dizer
que também não seria fácil arranjar mais gente para, por exemplo, organizar um
jogo de futebol. A rapaziada, daquela idade, nas ruas em redor, era pouca
Chegado o dia aprazado, lá nos dirigimos para o
local combinado, porque a mãe do que iria ser nosso guarda redes não lhe dava
autonomia suficiente para ele sair de ao pé da porta, esperando a chegada da
equipa adversária que havia de vir estrada abaixo. O tempo ia passando, não
havia telemóveis e ia-se aproximando a hora do almoço. Cada um começou então a
ter o seu problema. O guarda redes já tinha ouvido uma primeira chamada da sua
mãe e nós não tínhamos suplentes. Depois dalgumas conversas lá conseguimos a
disponibilidade do guarda redes por mais algum tempo. Por fim, lá apareceram, ao
cimo da rua, os tão esperados atletas adversários e o nosso espanto foi total.
Nem queríamos acreditar no que os nossos olhos viam. O nosso adversário levou
muito a sério o convite para uma mera brincadeira e apresentou-se todo equipado
a rigor, calção e camisola “à Benfica”, sticks a condizer e só não traziam
patins porque não seriam adequados ao terreno de jogo mas traziam botas de
futebol, com travessas, de acordo com o piso que iriam encontrar. Tudo à séria!
E se a nossa primeira reacção foi de espanto, a seguinte, pelo menos da minha
parte, foi de riso, um riso que hoje, à distância de mais de 60 anos ainda me
vem à face, só de me lembrar da estranha situação. A razão de ser de tudo isto,
era bem simples. A nossa equipa, dum amadorismo a toda a prova, equipava com a
roupinha que trazia nas brincadeiras, sapatos ou bota cardada e nas mãos,
orgulhosamente, ostentávamos aquilo que o nosso engenho e arte tinha achado
perfeito para jogar hóquei, uns "tarolos" de couve galega
de cerca de 1 metro
eram o stick mais económico e altamente ecológico. Escusado será dizer que a
outra equipa não ficou menos incrédula com a situação e quase se recusaram a
entrar em campo. Do jogo, a história é curta, o nosso guarda redes foi
convocado, com urgência, para ir almoçar e isto acelerou o descalabro já
previsto da equipa e eu diria que também desejado. Também, de urgência, eu
corri direito a casa não sem antes encontrar o meu pai no caminho, desejoso de
me aplicar o devido correctivo. O almoço estava na mesa, a arrefecer e eu, em
contrapartida, se já ia quentinho do esforço do jogo, ainda levei um suplemento
que nem atendeu à minha condição de esforçado desportista amador!
Além das sequelas da derrota em campo e fora dele,
ficou pois o que foi um confronto entre o puro amadorismo e o que já se
adivinhava de evolução tecnológica aplicada ao desporto, mesmo nas camadas
jovens!
Legenda das imagens deste “post”:
1-
Caderneta de “bonecos da bola”.
São os primeiros “bonecos” de que recordo, esta é a equipa do Sporting, da
época de 1944/45 e eu ainda sem saber ler, conhecia-os mesmo que só me
mostrassem o “boneco” apenas da cintura para baixo. (retirado de
www.cadernetasdefutebol.blogspot.com)
2-
Estampa duma caixa de fósforos
da época. Recordo uma bem bonita, com balões. (retirado de ????)
3-
O pião rodava na palma da mão.
(retirado de www.willyrenan.wordpress.com)
4-
Lançando os “papagaios”, mais
conhecidos como “estrelas”. (retirado de ???? )
5-
Caixa de jogos da “Majora”.
(retirado de www.santoantoniodacharneca.olx.pt)
6-
Tampa de caixa da “Meccano”.
(retirado de www.melright.com)
7- Equipa nacional de hóquei em
patins, campeã mundial em 1947. Na foto, em cima: Sidónio Serpa; Jesus Correia,
Cipriano Santos, Olivério Serpa e Álvaro Lopes. Em baixo: Correia dos Santos e José Prazeres (treinador).
(retirado de www.mundodesportivo.wordpress.pt)
8-
Couve galega e o seu “tarolo”
pronto para fazer de stick. (retirado de wikipédia)
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