(Cumpre, agora, falar sobre os professores ou, melhor, sobre as professoras da 1ª e da 4ª classe e o professor da 2ª e da 3ª classe)
Alguns dias após o dia 7 de Outubro (dia de abertura oficial das escolas), apareceu uma professora que morava na Rinchôa e que se chamava Maria Alice. Como já escrevi, não havia carteiras para todos porque eram duas classes juntas, a 1ª e, penso que a 3ª. Assim, durante o 1º período, sentava-me num banquinho, encostado à parede. Os trabalhos eram então feitos ou na ardósia ou num caderno em cima da ardósia. Recordo que nos primeiros dias, devido aos nervos, a criançada necessitava de fazer as suas necessidades mais amiúde. Assim, o ”Senhora professora, posso ir lá fora?” era constante e a professora tentava minimizar essas interrupções conforme ia podendo, o que originava uma certa retracção da pequenada e, consequentemente, algumas mijadelas pelas pernas abaixo, o que também a mim aconteceu por uma vez. A partir do 2º período já tivemos carteiras novas.
Desta professora só recordo que tinha uma filha da nossa idade e que gostava que lhe arranjássemos estampas (de santinhos ou outras) para ela. Vinha da Rinchoa a pé, pela estrada das Mercês e, tal como nós, tinha que se aguentar com a distância e as agruras do tempo. No ano seguinte, talvez desgostosa com a situação, terá ido para outra escola.
Só me lembro de uma vez ter brincado na área de recreio da escola. Ficava nas traseiras e era apenas um pedacito de terreno cheio de erva. Doutra vez, deu muito brado um achado que teria sido feito pela professora ou por uma empregada. Tratava-se de um ninho, suponho que apanhado por algum dos alunos e que deve ter sido escondido na casa de banho. Foi uma situação muito excitante e intrigante para as nossas cabecitas pois meteu lição de moral e tudo.
Não me dei mal, mas não deu para reter mais nada acerca dela. Fiz a prova final e passei para a 2ª classe.
Na 2ª classe tive um novo professor, o professor Lemos ( Augusto Sampaio Lemos ). Morava em Lisboa, na rua Maria Pia e era, suponho, de Vale do Peso, Crato (Alentejo). Tal como nós, fazia a pé o trajecto, da estação de comboio de Algueirão-Mem Martins até à Escola e vice-versa.
Foi uma grande diferença entre os métodos deste professor e a anterior professora. Logo no primeiro dia, a alguns alunos que já crescidos demais para andarem na escola pretendiam impor a sua lei, fez saber qual era a força do seu pontapé. Houve alguns que deixaram de ir à escola por via disso. O novo professor não estava para lhes aturar as “madurezas”. Outros tempos!
Logo no primeiro dia, o professor pôs-nos alinhados defronte dele, a ler a lição, cada um por sua vez. No fim, feita a apreciação individual, colocou-nos por ordem segundo a qualidade de leitura e interpretação gramatical. Depois, sempre que um aluno, mais mal classificado, tinha uma melhor interpretação que os outros, passava para a frente de um ou mais colegas sendo-lhe dada a incumbência de aplicar uma reguada em cada um dos ultrapassados. Escusado será dizer que sempre que algum aluno, normalmente mal classificado, se excedia no “zelo” com que aplicava as reguadas, estava a arranjar maneira de que na próxima vez que lhe calhasse a ele ser ultrapassado, o que era mais que provável, ser brindado com uma tareia das antigas, pois todos quantos o ultrapassavam queriam deixar-lhe a sua marca. Apesar de tudo a coisa era mais ou menos bem gerida e pacífica e não houve problemas de maior mas, eu não posso ser juiz em causa própria…
Como dava aula simultânea a duas classes, isso servia para que os da classe mais atrasada se fossem familiarizando com a matéria futura.
Levava o almoço numa marmita que aquecia numa lamparina, em cima da secretária, enquanto ia dando a aula.
Como bom alentejano, era muito “terra a terra” e não admitia abusos. Ensinava, mantinha a disciplina e tinha connosco uma boa relação. Pessoalmente, estava nas suas boas graças e também por isso, debati-me com um “grave problema”.
Aconteceu que, já depois do começo do ano lectivo, andava eu na 3ª classe, terá sido próximo do fim do 1º período, apareceu um aluno transferido não sei donde. Era o Corujeira. No último dia de aulas o professor preencheu a ficha de transferência do rapaz e havia que enviá-la para a Direcção Escolar, em Sintra. O professor, tal como nós, fazia o trajecto do atalho, para cima e para baixo e passava relativamente perto da estação dos Correios. Por uma qualquer razão e como eu passava mais perto, incumbiu-me de passar pela estação dos Correios e entregar a carta. Deu-me a carta durante a aula e eu pu-la na sacola. Tudo bem, só que ele não sabia que eu só iria mexer na sacola no dia em que fosse para a escola. Ela só me servia para levar e trazer livros e o parco almoço. Em casa nem lhe tocava, fazia os trabalhos na escola e quando chegava a casa pousava-a e “ala que se faz tarde, para a brincadeira”. Por vezes ainda ia ajudar o Lino a fazer os trabalhos. Ele morava defronte de mim e eu precisava dum parceiro!
Aconteceu, então, que esta cabeça nunca mais se lembrou de semelhante incumbência e no dia em que retornei à escola fiquei muito admirado com um envelope que ali estava à frente dos meus olhos, como que por encanto. Nem queria acreditar, até que ao fim dalgum tempo lá consegui lembrar-me do que era aquilo. E agora! O que ia ser da minha vida? Com muito jeitinho, tentei abrir o envelope sem o danificar e consegui. Boa! Apressei-me a ler o que lá estava dentro e vi, então, que era a transferência do rapaz. Tinha uma data que não recordo mas que era de uns 15 dias antes. Seria que já teria passado o prazo de entrega? Havia que resolver esse assunto. Mãos à obra! Lixívia (que eu já tinha visto o meu irmão usar), um palito, um mata-borrão, muito jeitinho, secar bem e passar com a unha por cima, para alisar bem o papel. Por fim uma caneta, tinta e muito cuidado e jeito para escrever uma data mais conveniente. Feito isto, lá vai o João, em corrida, até à estação dos Correios e a rezar a todos os santinhos e ao meu anjo da guarda, que tinha sempre à minha cabeceira, para que tudo corresse bem! Na escola, os dias seguintes foram de grande nervosismo. Quando o professor se dirigia a mim, eu ficava em transe. Estava sempre à espera que ele me falasse sobre o envelope. Os santinhos e o anjo da guarda portaram-se bem e eu prometi que não me metia noutra!
O Corujeira, vi-o, em Lisboa quando fez o exame de admissão no Liceu Passos Manuel.
(continua)
(Na foto, a sacola personalizada, verdadeira peça de “museu”. Em lona, com as minhas iniciais, com alça para pôr ao ombro onde haveriam de caber, o material escolar e o parco almoço. O livro é o da 4ª classe, só para dar uma ideia das dimensões da sacola.)
João ,boas recordações não é verdade ?!Claro que excluindo o prof. da 2ª que acho que até devia ser "vitoriano ", o da 3ªterá sido um típico alentejano .Ainda bem que o seu anjo da guarda o protegeu ...Quanto a mim ,se em apertos valia -me sempre da Srª do Almotão . Nós , na Idanha ,tínhamos uma escola para rapazes e outra para raparigas . Lembro-me de quando era a época de exames ,virem de todo o concelho os alunos para fazerem as provas na Idanha . Apesar do medo dos exames ,esses dias eram de festa e muito movimento . Quanto à sua sacola , uma verdadeira relíquia ...
ResponderEliminar«vesitas »
Quina
Olá, Quina!
ResponderEliminarRecordar é sempre bom, até porque aquilo que poderá ter sido mesmo mau, nós fazemos por esquecer.
O prof. da 2ª, que foi o mesmo da 3ª, pode ter tido um comportamento "vitoriano" mas aqueles meninos eram uns "eduardinos" ("teddy boys"), avançados na época. Por isso o tratamento foi o "adequado e proporcional", como agora se usa dizer.
Essa coisa dos exames na Idanha eram uma coisa falada. A minha mãe, lá teve que ir com o meu irmão. Viagem de carroça, com algumas peripécias nas curvas da "Munheca", dormida paga, em casa de alguém que se propusesse a isso, fazer de comer e ir lavar a roupa lá abaixo ao rio. Tudo para que o educando trouxesse aquela folha de papel onde estivesse escrito "APROVADO" ou, para os mais afortunados, "APROVADO COM DISTINÇÂO". O regresso a Salvaterra era uma festa!
Os meus exames foram muito mais pacatos, embora nervosos.
Quanto à sacola, eu guardo muita coisa mas até eu me admiro de ainda a ter. Feita pela minha mãe, faz todo o sentido.
Abraço,
João Celorico
João
ResponderEliminarDe regresso da aldeia deparei-me com estas recordações do tempo da "primária". São acontecimentos que o pessoal duma certa geração viveu de forma mais ou menos idêntica. Que diferença da actualidade! Havia muitos exageros, mas nós saímos ilesos (sem ajuda de psicólogos), com educação e princípios.
E a geração actual?
Chego a questionar-me como serão no futuro com a "rabaldaria" da educação que estão a receber na actualidade.
Só lhes desejo boa sorte.
Beijinhos.
Lourdes
Há coisas que nunca se esquecem, principalmente aquelas que por distracção, ou traquinices, nos faziam perder o sono e recear ser descobertos…
ResponderEliminarTambém tenho algumas histórias assim, que claro, nunca acabavam bem, pois eu ao contrário do João, era sempre descoberta…