(Em tempos, já longínquos, pensei enviar este conto para o Concurso de Contos do "Diário Popular". Porém, faltou-me a coragem para enviá-lo pois desconfiei muito da qualidade do mesmo. Hoje, deixei-me desses pruridos uma vez que já ninguém me vai levar muito a sério e desculparão a ousadia e também porque, com a idade, fui perdendo a "vergonha". Assim, "tirei-o da gaveta" e, em duas doses, aqui está ele, dado à estampa, em estreia mundial!
Será que se perdeu grande coisa?)
O DIA COMEÇA NO AUTOCARRO !
O despertador retiniu! São seis e meia, mas de que dia? Ah, é segunda-feira! Logo vi, pelo que me estava a custar abrir os olhos!
De Inverno é mais difícil acordar, pois a claridade não entra pela janela de modo a permitir localizar-me no tempo. Ligo o rádio e começo logo por ouvir um anúncio, porém sem o entender, pois esta agradável sonolência ainda não me largou.
O quê, já? Seis horas e quarenta e cinco minutos, disse o locutor, sempre solícito e prestável mas também com voz de ensonado.
Levanto-me num repente e começo o ritual do costume, quase como um autómato, dou comigo a engolir uma chávena de café com leite e duas torradas.
Olho o relógio e fico como que hipnotizado. Será possível, já sete e vinte e oito? O autocarro é às sete e trinta e dois. Tenho quatro minutos para mostrar o que valho!
Enfio o casaco e faço uma inspecção rápida aos bolsos, não vá faltar alguma coisa, o que é normalíssimo à segunda-feira. Desço a escada em passo de corrida, saio porta fora e ouço já o autocarro, roncando a subir a calçada.
Pelas minhas contas ainda tenho que andar dois minutos e sempre a subir. Já não o apanho! Paciência, irei de eléctrico. Vou chegar ainda mais atrasado que o costume.
Que hei-de fazer, à segunda-feira é sempre assim!
Deixei de ouvir o roncar do autocarro, não percebo bem porquê!
Faltam-me uns dez metros para atingir o fim da rua íngreme e começo a perceber. Um auxílio providencial! O autocarro, portento de dois andares, está parado pois, devido a uma brincadeira de moços estudantes, um latão (!) do lixo rebolava pela rua abaixo tornando o trânsito perigoso. Sorri ao deparar com a minha tábua de salvação.
Uns 20 anos atrás e isto não seria possível pois o lixo era colocado, normalmente, em caixotes de madeira ( alguns artisticamente pintados ) ou simplesmente embrulhado, o que também era muito do agrado da estudantada porque lhes permitia não só demonstrar os seus dotes futebolísticos como protestar contra quem atentava contra a saúde pública, pondo tais embrulhos no meio da rua. Hoje, porém, isso não é possível, graças a uma “louvável” iniciativa da Câmara Municipal de Lisboa que em tempos tornou obrigatório o uso dum recipiente metálico, comprado, se não estou em erro, pela “módica” quantia de 70$00. Somos, claro, um país de predestinados e improvisadores pelo que houve logo uns “artistas” que compraram umas chapinhas à dita Câmara (mais baratas, pois então) e as colocaram em latões, latas, bidões (que foram de tinta, de óleo, de banha, etc.) e tornaram as portas dos prédios em verdadeiras exposições de “design”. Outros, nem as chapinhas compraram pois que estas não favoreciam, em nada, nem a algibeira nem o “design”.
Bem, mas hoje estou de acordo com eles, pois descobri mais uma das utilidades de tais latões. Cheguei à paragem ainda antes do autocarro. As mesmas caras do costume, quer na paragem quer dentro do autocarro. Devíamos formar um clube! Está na moda e é fino. Talvez o Clube do Autocarro das 7 e 32, quando não vem atrasado!
Subo ao andar superior, dou uma vista de olhos, tentando descobrir um banco totalmente vago, mas não encontro nenhum. Sento-me então já aqui ao lado da moça que vai descer duas paragens mais adiante e que me olha desconfiada, ela lá saberá porquê! Faço de conta de que não é nada comigo e ela parece ficar mais descansada.
Começo a minha observação, banco por banco.
Lá está, à frente, sempre no mesmo banco, só de uma pessoa (talvez tenha assinatura), a estudante de Química, nariz tipo “Mafalda Sofia”, impante de força e juventude.
No banco corrido, em frente, o guarda republicano que gosta de ver bem por onde passa.
Vários trabalhadores que saiem, normalmente, nas próximas duas ou três paragens. A senhora da qual eu sou o relógio ou vice-versa pois que nos encontramos, com bastante frequência, na nossa corrida para o autocarro.
O indivíduo ainda novo, de bigode, que deve passar mal as noites pois mal entra no autocarro, depois de passar uma breve vista de olhos pelo elenco feminino, passa logo pelas “brasas”.
Um pouco à frente, três indivíduos discutem as agruras da tarde de domingo pois o seu clube favorito é dos que está a passar um mau bocado. Há um, no entanto, que está conformado. Em todo o lado acontece isso!
No banco de trás há quem se lastime: -“ Não está certo! Ele disse que pediu ao Director do Estádio Nacional para nós jogarmos lá, sempre que possível e que lhe fora prometido e então na quinta-feira telefonam-nos a dizer que não era lá o jogo. Era no Boa-Hora! Tivemos que andar a avisar tudo à pressa, pois o jogo era no sábado. Mas sabes quem foi jogar ao Estádio Nacional no sábado? Nem adivinhas! Pois foram as “tipas” do “ABC”. Não está bem. O desporto federado a ser corrido por causa duma paródia!”
Penso que, realmente, só de paródia!
E continuou na sua lamúria, enquanto se levantava e se dirigia para a saída mais o seu colega que lhe ia dando razão, conforme lhe era possível.
Fico também a pensar que não está bem, mas, enfim deixem lá as meninas brincar um bocadinho, para bem do desporto nacional e de alguns “mirones”. E para isso que melhor senão o Estádio Nacional?
(continua)
Venha de lá o resto da história, amigo João, que até aqui captou a nossa atenção...
ResponderEliminarDe facto, quem trabalha não tem a vida facilitada. É o acordar cedo, ter de despachar para o transporte não perder, ver quase as mesmas caras todos os dias...
É uma ideia engraçada essa de se formarem clubes dos autocarros...
"O clube da carreira 25" (ou outra carreira qualquer)... Afinal, estão todos ali, à mesma hora, ouvindo, sem querer, as histórias uns dos outros...
E antigamente não havia telemóveis, imagine hoje o que se fica a saber, pois muita gente aproveita para falar alto ao telemóvel durante o percurso... E nós, fingimos nem escutar...
Gosto muito de Lisboa, não fora a minha cidade natal... Mas só gosto de Lisboa para passear, porque é grande o stress de quem lá trabalha.
Durante os anos que lá estudei, apanhava 3 transportes diferentes: o autocarro, o cacilheiro e o eléctrico. Saía de casa a correr e voltava a correr para apanhar os transportes. Mesmo nos dias que não tinha pressa de chegar a casa, parece que as pessoas me contaminavam com a sua correria, e automaticamente, lá apressava eu o passo.
Tendo utilizado 3 transportes diferentes, imagine quantas caras eu via todos os dias, para lá e para cá... Não haveria clubes que chegassem!
O que mais impressão me fazia, era ver as caras carrancudas das pessoas. Por mais que já se tivessem visto, vezes sem conta, nunca dali saía um bom-dia, ou um sorriso, e pensava para comigo: Lisboa é uma cidade tão bonita, mas tão triste...
De qualquer maneira, feliz de quem trabalha, principalmente nos dias que correm...
Uma boa semana também para si.
Um abraço,
Cristina
Cristina, aí tem o resto da estória. Oxalá não tenha desmerecido o seu interesse. É um facto que as pessoas andam a ver-se, anos a fio, e não se conhecem. E é engraçado que, anos mais tarde aparecem-nos em locais inesperados. Quando andei embarcado, cheguei a encontrar, em África, pessoas que conhecia só de vista.
ResponderEliminarSou de memória visual relativamente apurada pelo que a fisionomia das pessoas não me escapa com facilidade e como eu, pela vida fora, fui andando em várias escolas, vida militar, empresas e tipos de transporte (cheguei a fazer o trajecto da Ajuda para o Terreiro do Paço, ou Cais do Sodré, de eléctrico, ou autocarro e comboio e depois, cacilheiro e autocarro), já pode ver a quantidade de rostos no meu "catálogo".
E, muito eu gostava deste trajecto, apanhando o ar fresco da manhã, mau grado os dias de temporal!
Abraço e bem haja,
João Celorico