O país está de luto! Ontem, morreu o Presidente da República, Marechal António Óscar de Fragoso Carmona!
Era uma quinta-feira e não houve escola. Ordens superiores, informaram que em sinal de luto todas as escolas encerrariam. Para nós foi uma alegria e o alvoroço foi geral. Eu morava na rua dos Poiais de São Bento e a Escola Primária era mesmo defronte. Toca a voltar para casa!
Até aqui, tudo normal. Atravessei a rua, agora em sentido contrário, subi as escadas até ao 4º andar e o dia continuaria. Porém, queria o Destino que o dia não decorresse tão pacato assim.
Foi o caso de que, depois de terminado o almoço, decidi, com o consentimento da minha mãe, ir visitar uns tios e primo que moravam na Av. 24 de Julho. A distância não era longa, naquele tempo não havia o trânsito dos dias de hoje e embora eu estivesse em Lisboa apenas há cerca de 6 meses, era um trajecto bem conhecido. A permissão foi dada mas tinha hora prevista de retorno, claro, e seria no máximo, lá por volta das 17 horas.
Foi então que o tal Destino quis que eu retornasse ainda um pouco mais cedo e, quando já estava mesmo à porta de casa visse, a sair da Escola, alguns dos meus colegas que teriam acorrido a um apelo da própria Escola e tinham organizado, com e sob a direcção do director e da “contínua”, ali mesmo, uma “excursão” à Assembleia Nacional, onde expostos à população, estavam os restos mortais do Presidente. Depois de devidamente informado do que se preparava, disse que ia só avisar a minha mãe e já vinha ter com eles. Que não podia ser, diziam eles, pois tinham que ir imediatamente. Claro que naquelas juvenis cabeças, imediatamente era já, e não se fala mais nisso. Posto perante tal dilema e como o problema era dar ali um saltinho só até à Assembleia, ver o homem, que até estava morto e voltar a casa de seguida, isso seria coisa rápida.
Como eu me enganava! Subida a rua do Vale, a Jesus, e descidas as Escadinhas da Arrochela, para entrar no imenso mar de gente que se acotovelava defronte da Assembleia, foi o cabo dos trabalhos. Dia bem quente, apesar da chuva miudinha do dia anterior, pouco tempo passou para a “contínua” desmaiar e o grupo ficar tresmalhado. Depois de furar pela multidão, dei comigo, e mais 2 colegas, no ajardinado lateral, defronte da Rua Nova da Piedade, chamado Jardim de S. Bento, onde hoje é o parque de estacionamento da Assembleia da República. Aqui, um pelotão de soldados tentava proteger umas miúdas duma qualquer escola, também elas quase em pânico. Tentámos nós também usar essa protecção. Entretanto o tempo ia passando, fazia-se tarde e eu, mais os meus 2 colegas, resolvemos enfrentar as dificuldades e fura daqui, empurra dali, escapulimo-nos e aí estávamos nós, impantes, no alto da escadaria exterior. Lá dentro, subimos a escadaria em passo de corrida, passámos pelo professor Araújo, o nosso director, entrámos no salão onde estava a urna exposta e era verdade, o homem estava mesmo morto! A guarda de honra mantinha-nos em respeito e tratámos de sair dali, quanto antes. Eram cerca das 8 horas da noite! Fizemos o caminho de regresso e enaltecíamos a nossa brilhante vitória! Ainda lá havia muita gente à espera e nós tínhamos alcançado o objectivo. Seria um dia de glória para contar no futuro e começaria já, quando em casa eu contasse a minha odisseia. E, ia nestes pensamentos, enquanto, ofegante, escada acima, subia ao meu 4º andar. Radiante, bati à porta e do que sucedeu a seguir, nem me quero recordar. Nem tive tempo de abrir a boca! Foi a maior “bolatchada” na cara que a minha mãe, Deus lhe tenha a alma em descanso, meu deu alguma vez. Doeu-me, mas fiquei incrédulo. Então, depois dum feito tão memorável, era aquilo a que eu tinha direito?
Só mais tarde pude perceber a aflição em que a minha mãe se encontrava. Ela já tinha ido a casa dos meus tios (naquele tempo, nem todos tinham telefone e ninguém ainda sonhava com telemóvel), já me tinha procurado por tudo quanto era sítio e do João, nem novas nem mandados. Ainda por cima, sabendo que não era meu costume ser tão descuidado!
E, foi assim que terminou um dia que prometia ser memorável mas que ficou inesquecível pelas piores razões.
Para terminar e após tão atribulada aventura, posso informar que, dois dias depois, agarrado ao gradeamento que delimita a via férrea, quase defronte dos Armazéns Frigoríficos, hoje Museu do Oriente, assisti ao cortejo fúnebre, que da Assembleia Nacional se dirigia para o Mosteiro dos Jerónimos, passando na Av. 24 de Julho mas, agora, acompanhado do meu pai.
O “temporal” do dia 19, já tinha passado!
Nota: (Aproveitando o, talvez, "adormecimento" dos virtuais "passageiros" desta viagem, aqui fico este "post" )
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