Mau grado toda a inocência e boa vontade, um facto por muito que
repetidamente afirmado, nunca será verdade se não houver algo que o confirme!
Porém, por vezes, o fervor e a fé que pomos em algo que muito desejamos,
faz-nos repetir esse mesmo desejo até à exaustão, fazendo-nos e a outros
acreditar nele.
Parece ser esse o caso da data, já por muitos propalada, do início do Bodo
em honra de Nossa Senhora da Consolação que dizem ser o ano de 1877!
Ora, em boa verdade, parece ninguém poder afirmar tal facto!
Se não, vejamos:
- Em 20 de Abril de 1758, nas Memórias Paroquiais, se refere que no lugar
de Monfortinho, “– Em outavário da Páscoa
vem a Câmara da vila de Penha Garcia e o povo em satisfação de um voto que fez
a dita vila mui antigo com louvores à dita Senhora padroeira do lugar aonde lhe
fazem uma festa em o dia de Nossa Senhora dos Prazeres; concorrem da vila de
Salvaterra com o mesmo voto, cujos votos fizeram estas duas povoações pelos
grandes estragos que lhe faziam nas searas a lagosta, da qual até hoje se tem
visto livres por intercessão da Senhora.”
- Pinho Leal, escreve que: “Em junho de 1876, foram estas terras invadidas por
uma nuvem de gafanhotos que fizeram grandes devastações nos campos e pomares.
Para se fazer ideia aproximada da grande quantidade de gafanhotos que
assolaram estas terras, basta dizer que, no dia 2 de junho, 30 pessoas, em 45
minutos, apanharam 60 alqueires d’elles!”
E também: “Ainda no dia 21 de maio de 1877, …; porém a freguezia que mais
soffreu, foi esta de Salvaterra do Extremo.
No referido dia 21, foram apanhados 1:291 kilogrammas d’estes insectos - no
dia seguinte, 2:208 e meio kilogrammas - e no dia 23, 2:232 e meio
kilogrammas.”
- Jaime Lopes Dias, refere uma outra praga, no ano de 1870.
- O cor. António Lopes Mendes, na sua Monografia, em 1914, afirma: “davam bodo aos pobres e aos romeiros, na
festa de Monfortinho, antes de 1905.”
- J. D. Bargão, capitão da GNR, na sua “Monografia de Salvaterra do Extremo”,
em 1945, decerto também baseado na Monografia do cor. Mendes, escreve: “Em certo ano – 1870 – segundo informação
local, Maio de 1877 segundo Pinho Leal, os ubérrimos campos de Salvaterra foram
invadidos por grande praga de gafanhotos.”
E mais adiante: “Maldição, diziam
uns, castigo do céu lhe chamavam outros. Vá de prometer festa rija à Senhora da
Consolação sempre tão solícita e bondosa e procissão e penitência e bodo anual
para ser servido a toda a pobreza e a quem mais quisesse. Tudo sairia das
ofertas de trigo, azeite, vinho e demais géneros que a terra livre da praga
voltaria a dar com fartura.”
- Na Sessão do dia 8 de Maio de 1901, nas Cortes Constituintes, o sr. Conde
de Penha Garcia, chamava a atenção da Câmara para a ruína em que se encontrava
a sua província e entre outras coisas, dizia: “Sou informado de que na
zona da fronteira começam os gafanhotos a atravessar para o nosso país e de que
já na região de Salvaterra do Extremo teem sido devastadas algumas cearas.”
Perante tudo isto que aqui ficou dito e que parece documentado, além de ter
também consultado o livro “A Festa de Nossa Senhora da Consolação”, da autoria
do Pd. Bonifácio Bernardo, o que se me oferece dizer, é o que deixo a seguir.
Parece ser comum, as promessas serem feitas com o objectivo de obter algo em
troca, pagando-as depois, muito embora haja quem ache por bem pagar primeiro e
aguardar ser atendido no seu pedido.
No caso presente, se o pagamento da promessa, isto é, a realização do Bodo
foi anterior à intercessão da Senhora, isso quererá dizer que qualquer data
será válida e até poderá ser muito anterior a 1877. Isto porque pragas de
gafanhotos terá havido anteriormente e muitas. Disso já nos falam as Memórias
Paroquiais, em 1758.Se, por acaso, o povo as sentiu mais nesses anos relatados, 1876 e 1877 e fez então a promessa do Bodo, não é muito crível que o mesmo se tenha realizado em 1877. Aliás, lendo o que o cap. Bargão diz: “Tudo sairia das ofertas de trigo, azeite, vinho e demais géneros que a terra livre da praga voltaria a dar com fartura.”
Ora, nem em 1876, nem em 1877, após tamanha desgraça, “a terra livre da praga voltaria a dar com fartura”. Na melhor das hipóteses, só em 1878, depois da intercessão da Senhora, haveria razões e celeiros cheios para a realização do Bodo.
Porém, também nunca essas pragas foram referidas nas Cortes Constituintes, onde apenas conseguirmos ver o que se diz no dia 8 de Maio de 1901!
Posto isto:
a)
Nunca, em
documento algum, se refere a data em que se realizou o 1º Bodo.
b)
Também não é muito
crível a data 1877.
c)
Na melhor das
hipóteses, só no ano de 1878. Mesmo assim, não seria fácil, depois de tanta
desgraça nos 2 anos anteriores, que já nesse ano houvesse fartura suficiente,
atendendo a que a última praga, em 1877, foi em Junho e que a festa do ano
seguinte foi em 29 de Abril. Nessa data, decerto, ainda a colheita não tinha
sido feita. Portanto, talvez só em 1879!
Finalmente, para quê todo este trabalho? Dir-me-ão!
Diz-se que “Voz do povo é voz de Deus” e eu não quero que a voz de Deus,
por pouco cuidado do povo, seja desacreditada!E acontece que, nos tempos que correm, se vai afirmando muita coisa sem haver certeza nenhuma do que se fala!
Por tudo o que atrás ficou escrito, parece-me ser mais correcto dizer-se que é uma tradição já muito
antiga e que, provavelmente, remonta à década de 70 do século XIX! Tudo o resto,
parece-me ser efabulação!
Bem hajam pelo tempo que se dispuseram a ler isto!