Apresentei-me numa 2ª feira, dia 29 de Agosto de 1955, e comecei a minha vida profissional, como Aprendiz de Serralheiro Mecânico.
Foi-me atribuído
um número e passei a ser o operário nº 844. Feita a minha inscrição na Caixa de
Previdência dos Técnicos e Operários Metalúrgicos e Metalo-Mecânicos, passei a
ser o beneficiário nº 153.329, constando o dia 01/09/1955 como data de admissão.
Saía de casa, na Rua das Trinas, a lancheira numa das mãos
e com o meu fatinho de macaco vestido, só para o caminho porque para trabalho
tinha outro e, sempre a pé, lá ia eu pelas ruas, Garcia da Orta, de S.
Domingos, à Lapa, Travessa da Amoreira, Rua Joaquim Casimiro, Rua Ribeiro
Sanches, Rua Maestro António Taborda e finalmente avenida Infante Santo. À
tarde o esquema era o inverso.
Visto à distância de quase 50 anos, as instalações onde
estavam implantados o Vestiário, Lavabos e Refeitório, eram pouco menos que
imundas. Tais instalações, nos dias de hoje, eram inconcebíveis. Era tudo muito
escuro, muito interior e pouco ventilado. O refeitório, exíguo, só dava para
comermos porque muitos iam almoçar a casa ou nalguma taberna, fora da oficina.
Depois de me ser indicado o armário onde guardaria roupa e
lancheira, apresentei-me na oficina e o mestre, Carolino de seu nome, homem do
Porto e adepto do FCP, pôs-me a ajudar um oficial, Alberto, que por acaso
estava na oficina nessa altura, mas que era um serralheiro que normalmente
trabalhava a bordo dos navios em reparação. Era um indivíduo de mais de 50
anos, penso eu, boa pessoa e humilde. Parecia que eu não tinha começado mal!
Deu-me umas porcas para eu passar a rosca com um macho e foi o meu primeiro
trabalho. Mas, azar dos azares, meti o macho na porca e depois de ter passado
toda a rosca, pretendi fazer sair o macho por baixo, senti alguma resistência,
forcei e quando dei por ela tinha o desandador na mão só com um bocado do
macho, o outro bocado estava na porca e eu não percebia porque não tinha
passado. Afinal a explicação era fácil, o macho não tinha saída. Na escola eu
só tinha visto e utilizado machos com saída e foi o suficiente para eu partir
este macho. E agora como é que eu ia resolver isto? Se calhar tinha que pagar o
macho, pensei eu! O oficial e a rapaziada à volta sossegaram-me um pouco, mas
não muito. A solução era ir junto do mestre Carolino, com um papel de
justificação, passado pela Ferramentaria, para ele assinar e dar baixa do
material. Enchi-me de coragem e com muitos nervos à mistura lá fui com o papel.
O mestre, com a boina na cabeça, puxada para trás, e os óculos na ponta do
nariz, olhou-me por cima dos mesmos e atirou-me “ Já? Começas bem!”. Assinou o
papel e eu desandei mais rápido que um rato. Daquela já eu me tinha escapado. A
partir daí a coisa foi evoluindo bastante bem. Estive uns tempos a ajudar o
Manuel Correia, “Manel dos Compressores”, indivíduo de 25 a 30 anos, cujo
trabalho era fazer a manutenção e reparação dos compressores móveis e das
máquinas de soldadura “Hobart”, também móveis e que faziam serviço junto dos
navios em reparação. O principal cliente do “Argibay”, como já referi, era a
“Companhia Marítima de Carregadores Açoreanos”.
Durante o tempo em que estive a ajudar o Manuel Correia,
fui trabalhar num domingo, para reparar o motor da camioneta de carga, uma
“Buick”. Lembro-me de nesse dia estar a cantar e assobiar uma música da Maria
de Lurdes Resende que estava na moda e estava a passar no rádio da camioneta.
Ia-me saindo caro, esse dia, porque ao adelgaçar uma chave fendas, esta
prendeu-se entre a mó e a espera e se a mó se tem partido não sei se estaria
aqui para contar. Doutra vez, também a afiar, talvez uma broca ou um escopro, a
cabeça do dedo indicador direito levou uma raspadela que durante bastante tempo
me deixou essa zona bastante sensível.
O Manuel Correia tinha uma mota que era a sua paixão. Era
boa pessoa, marcava bem a sua posição em relação aos outros oficiais, até
porque o trabalho dele era no exterior da oficina, era mais mecânico de
automóveis do que serralheiro, pelo que não dava azo a grandes intimidades.
Também ajudei o Sebastião, indivíduo de 30 a 35 anos,
casado e amigo do “Manel”, numa altura em que o esteve a substituir.
Noutra altura estive a ajudar o João Baptista, “Taínha”,
quando ele regressou da montagem da Fábrica de Celulose do Guadiana, em Mourão.
Indivíduo gago, adepto fervoroso de “Os Belenenses”, também de 30 a 35 anos e
casado. Boa pessoa e bom profissional. Muito meu amigo, eu às vezes já
gaguejava ao falar com ele pelo que ele ficava desconfiado mas passava-lhe
porque ele tinha confiança em mim. Contava-me que quando estava a fazer a
montagem da fábrica, veio de propósito a Lisboa para ver o jogo
Belenenses-Sporting, no último dia do campeonato de 1954/1955 e que em caso de
vitória do Belenenses lhe daria o campeonato. Aconteceu o golo do Martins, a 4
minutos do fim e o homem teve um desgosto tal que de noite acordava a sonhar
com o golo. Anos mais tarde, quando fui morar para a rua D. João de Castro,
soube que ele morava na rua da Aliança Operária.
Num intervalo, coube-me ajudar um oficial de nome Ramos,
julgo eu, de perto de 55 anos, profissional competente mas de trato difícil,
diziam. Poucos gostavam de o ajudar e mantinha a uma certa distância os outros
oficiais que ele considerava pouco menos que uns brutos, salvo raras excepções.
Era indivíduo que pouco estava na oficina. O trabalho dele era mais de
exterior. Pois bem, tratei de preparar as orelhas e lá fui. Ou porque eu já ia
avisado ou porque eu lhe fazia as vontades, o que é certo é que não só me
ensinava algumas coisas como não embirrava comigo. Certo, também, é que não se
continha em dizer mal de alguns e eu ia ouvindo e achando que por vezes até não
deixava de ter razão. Após alguns dias, apareceu-nos um trabalho de exterior
para fazer. Foi na Fábrica “Águia”, na rua Vieira da Silva, em Alcântara. Era
uma fábrica de rebuçados e íamos reparar a tubagem dum condensador. Nesse dia
não faltaram as ofertas de caramelos e a coisa corria bem, só que no dia
seguinte tive que sair mais cedo, por problemas de escola, e tive que
dizer-lho. Esperava que resmungasse mas só mostrou alguma pena, pois parecia
que nos estávamos a dar bem e aceitou o que era inevitável.
Voltei então a ajudar o João “Taínha”, com quem também fui
fazer um trabalho de exterior, no refeitório do Banco de Portugal, na Rua do
Comércio. Fomos reparar uma caldeira. Ocupou-nos apenas um dia.
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(retirado de http://riodasmacas.blogspot.pt)
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Foi com este oficial que eu me mantive mais tempo e
aprendi a traçar flanges e a fazer a respectiva furação. Lembro-me também de um
trabalho de reparação do tambor duma máquina de fazer iogurtes, para a Fábrica
de Iogurtes “Veneza”., o tal do “slogan”, “Yogurte Veneza, a saúde à sua mesa”.
Costumava lá ir o senhor suíço que era dono da fábrica.
O horário de trabalho desenrolava-se de 2ª a sábado, das
08.00h às 17.00h, com uma hora para almoço, das 12.00h às 13.00h.
No sábado a partir das 15.00h, os aprendizes tinham de
fazer a limpeza da oficina. Pegávamos na vassoura e toca a varrer. Como a
oficina tinha uns estrados de madeira, tínhamos também que os reparar se
necessário fosse. Certo dia calhou-me a mim fazer essa reparação que se
limitava a ter de pregar uns pregos. Fácil, fácil, fácil! Pois é, mas eu devia
estar com pressa e ao dar a martelada no prego, fui acertar em cheio na cabeça
do polegar da mão esquerda que nem sequer estava próximo do prego. Torci-me no
chão, cheio de dores e lá tive que me aguentar. Furei a unha, para tirar o
sangue pisado, e a unha foi crescendo até cair daí a uns tempos.
O inverno foi bastante frio, chegou mesmo a nevar, e a
localização da oficina não dava azo a que o sol a aquecesse. Tínhamos bidões na
oficina que faziam de salamandras para aquecer o ambiente. Andava de casaco
vestido e toda a roupa era pouca. Anos antes, o frezador, suponho que era
catalão, velhote de cerca de 70 anos, tinha enregelado e o mestre Carolino,
então, passava o dia a perguntar, “Ó Gillot, estás com frio?”. O velhote, só
com as calças e uma casaca de ganga, dizia que não. Estávamos sempre a ver
quando é que o homem caía para o lado. Passava o dia agarrado à frezadora, não
falava com ninguém e tratava a máquina como se fosse a sua filha. Ele limpava,
lixava, oleava, polia, afiava as frezas, só lhe faltava dar-lhes beijinhos!
Na minha lancheira levava o almoço e um suplemento para o
caminho de regresso. O almoço constava de sopa, numa panela de litro, uma
marmita com bife, o mais normal, ou peixe, uma garrafita com aproximadamente 2
decilitros de vinho (eu era um “alcoólico”), quatro carcaças, duas delas com
marmelada, queijo, manteiga ou fiambre, e uma ou duas peças de fruta, nesse
tempo eu gostava muito de laranjas. Pelos vistos apetite não me faltava. As
duas carcaças arranjadas, eram para comer no caminho de regresso a casa, onde
já tinha o jantar à espera pois que antes das 18h.30min eu tinha que sair, rumo
à Marquês de Pombal, em Alcântara. Sempre a pé, a não ser que a chuva obrigasse
a apanhar o eléctrico 18. A refeição mantinha-se quente, normalmente, desde
manhã até à hora do almoço, porque ia embrulhada em jornais. Quando fosse
necessário aquecê-la, havia um fogão com uma grande chapa, numa gruta ao fundo
da Caldeiraria onde podíamos ir aquecer o comer.
Por vezes, na hora do almoço, ainda havia tempo para vir
fora da oficina, junto à avenida Infante Santo, dar uns toques futebolísticos,
para aquecer ou para manter a forma. Até com cascas de laranja se jogava!
Qualquer semelhança entre o trânsito dessa altura na
avenida e o de hoje é pura coincidência.
Lembro-me de um dia, cerca das 08.00h, quando ia chegando
ao Argibay, ter deparado com um prédio, hoje o nº 48, que estava então em
construção, logo abaixo do gasómetro que ali existia, completamente
desmoronado.
Estive doente com varicela, penso que em princípios de
1956. Chamou-se o médico lá a casa e ele deu-me baixa. Pensava eu que tudo
estava bem e que a Caixa de Previdência e a empresa lá se entenderiam. Não
comuniquei para a empresa e apresentei-me passadas as duas semanas da baixa.
Ninguém sabia nada de mim e julgavam que eu me tinha ido embora sem dizer, água
vai! Lá deslindei o caso e a vida continuou.
Em Março de 1956, também meti uma licença numa parte da
tarde para ir esperar um tio meu, que regressava da Índia Portuguesa, onde
esteve em Pondá, no estado de Goa. Como é natural achou-me muito crescido e já
não era o menino de 12 anos que ele tinha deixado ao partir.
Foram 9 meses relativamente bem passados. Eu andava
satisfeito e sentia-me cada dia melhor. É certo que, para isso, muito ajudava o
acolhimento que fui recebendo de praticamente todos os que ia conhecendo. Penso
que isso também seria fruto de eu andar no 4º ano, ao contrário dos outros
aprendizes que mesmo sendo mais velhos, andavam no 1º ou no 2º ano. No entanto,
também mais vale cair em graça do que ser engraçado e eu, excepção feita ao
“desastre” do 1º dia, caí nas graças do mestre Carolino. O FCP estava na mó de
cima, o treinador era o Yustrich e na linha avançada, a extremo esquerdo,
jogava o Perdigão, jogador de cor com quem ele me achava muito parecido.
Essa parecença era muito ajudada pelo facto de eu, no fim
do Verão, passar de moreno a quase preto. Como comecei a trabalhar no dia 29 de
Agosto, talvez explique um pouco. Assim, começou a engraçar comigo, a chamar-me
de “Perdigão” (ao Verónico chamava-o de “Jaburu”, outro jogador do Porto), a
pedir-me para fazer as requisições de material porque tinha boa letra, no seu
entender, e a falar comigo com certa afabilidade. Um dia, vinha ele do almoço,
sempre bem regado, boina puxada para trás e a propósito dos aumentos de
vencimento que tinha havido perguntou-me se eu também tinha sido aumentado.
Respondi que não e ele disse-me, “ Não te preocupes. Vai aprendendo que os
aumentos virão!”. Embora o aumento fosse de 11$80 para 12$70, por dia, se a
memória não me falha, caíram-me bem aquelas palavras que ele não teve com mais
ninguém. Ficou muito admirado quando lhe disse que me ia embora para a AGPL,
mas desejou-me boa sorte.
Nesse tempo havia clubes que faziam apostas desportivas,
baseadas nos jogos da 1ª Divisão. Dois dos mais conhecidos eram o Clube
Oriental de Lisboa e o Atlético Clube de Portugal. Os boletins eram
distribuídos por operários junto dos seus colegas de trabalho. A classe fabril,
onde estes clubes tinham grande massa de adeptos, era o maior suporte destas
apostas. Foi num destes concursos, do Atlético, que eu ganhei um 3º prémio,
coisa irrisória uma vez que o prémio máximo nunca tinha atingido mais que
1.000$00. Tive que estar até 3ª feira à espera de saber se ganhava alguma
coisa, porque um dos jogos foi interrompido, devido ao mau tempo e só na 3ª
feira se realizou. O Governo perseguia estes jogos, considerados ilegais, e
tratou de criar o Totobola.
Já que estou a falar de futebol, lembro-me que além de ser
o ano do FCP, havia também o Campeonato Nacional de Reservas e parece-me também
o de Aspirantes. O Sporting jogava no Estádio da Tapadinha porque o Estádio de
Alvalade estava em construção.
Por esta altura também começaram a aparecer colecções de
cromos. Até aí as colecções eram quase que exclusivamente de “bonecos” a
embrulhar um rebuçado. Eram assim as colecções de jogadores da bola, por
exemplo. As colecções de cromos, que tinham aparecido até então, destinavam-se
principalmente ao público infantil ou juvenil.
Porém, em Março de 1956, apareceu uma colecção, “Raças Humanas”,
que deve ter ultrapassado as vendas previstas tal era o entusiasmo que eu
verificava em muitos dos adultos da oficina, entre os quais me parecia ser o
Sebastião o mais entusiasmado.
Já foi atrás aflorado o facto de alguns operários serem só
para trabalhos a bordo. Chamavam-lhes serralheiros do “gancho”. Normalmente só
trabalhavam quando eram chamados. Viviam na corda bamba! Não tinham trabalho
certo, seria já a “flexigurança”? Desses, excepção feita ao meu primeiro
oficial, Alberto de seu nome, não me lembro de ninguém em especial, uma vez que
não paravam na oficina.
Lembro-me que havia um aprendiz da Caldeiraria, que também
vendia jornais, que ganhou o Prémio Vale Flor. Tinha salvo alguém, talvez uma
criança de morrer queimada, penso eu. Era um tipo “reguila”, típico de
Alcântara e tinha feito qualquer coisa boa. O dinheiro do prémio ficou a
aguardar a maioridade, caso contrário era estourado ou por ele ou alguém por
ele.
Também na reparação de um navio, “Le Rechin”, que tinha
naufragado perto do Cais do Sodré, houve problemas porque começou a desaparecer
material de latão lá de bordo, meteu Polícia e foi caçado um aprendiz ou
ajudante que parece que afinal não aprendia nem ajudava nada mas já sabia tudo!
Um dia, penso que em fins de Maio ou princípios de Junho
de 1956, estava eu muito satisfeito pois no dia anterior tinha-me sido entregue
o primeiro trabalho para eu fazer sozinho, marcar e furar umas flanges, para o
jardim de inverno do navio dos pilotos da barra “Comandante Pedro Rodrigues” e
que eu terminaria na 2ª feira seguinte. Quando o meu pai chegou a casa, deu-me
a “agradável” notícia de que nessa 2ª feira me devia apresentar na AGPL, onde
iria começar o meu trabalho como “moço de picagem”. Brilhante! Ia passar de
cavalo para burro, apesar de ir ganhar mais, penso que 15$70! Até chorei! O meu
pai disse-me que tinha pedido ao Eng. Saraiva Cabral e que este tinha dito que
para eu ir para as oficinas da AGPL tinha que entrar pela picagem. Estava assim
determinado superiormente e ali estava eu sem poder dizer que não!
Assim acabou a minha aventura no “Argibay”!