segunda-feira, 18 de julho de 2011

Eu e ... a "Rota do Contrabando" ( conclusão )

A minha "aprendizagem de contrabandista" nesta "rota", resume-se a dois episódios, que passo a relatar.

Corria o Verão de 1954, estava de férias escolares, numa data perto da Feira de San Bartolomé, a Feira Espanhola como é conhecida, época em que a fronteira era normalmente aberta, fui à Zarza com a minha avó e uma prima.
Manhã cedo, ainda mal abria o sol, para chegar à Zarza antes das 9 horas, à abertura das lojas, aí vamos nós. Penso que fomos pela fonte da Ribeira, que a ribeira ia baixa e lá nos metemos por aqueles carreiros fora. Eu, “sangue na guelra”, a correr e a saltar, muito contente, resolvia mexer em tudo que achava de “interesse”. E, foi assim que me apareceu um calhau mesmo a pedir para eu mostrar as minhas forças. Mãos à obra e o calhau é levantado, mas logo deixado cair. Um “bonito” “bitcho alacrário” estava lá debaixo. Deve-me ter valido que o bicho ainda estava ensonado e não se sentiu muito ofendido, caso contrário já teria muito que contar. Passado este episódio, o João já foi sossegadinho até à povoação. Valeu o susto!
Comemos alguma coisa na loja do Juan onde vi que a casa, além de ter um poço na cozinha, também o corredor dava passagem para os animais.
Fomos ao talho, comprar talvez um bifinho de vaca para o rapaz, porque em Salvaterra não era fácil encontrar carne de vaca. Depois a minha prima ofereceu-me um “letche i lao” (era assim a pronúncia), que é “leche gelao” ou seja, ou que pretendia ser, um “gelado", ou “sorvete”. Coisa intragável, nem o barquilho se aproveitava e o gelado era mais, “água gelada”. Deitei fora!
Neste tempo, contrabando normal eram os frascos de perfume, “Tabu” ou “Flores del campo”.
A mim, bastou-me comprar um canivete, vulgo “navalha”, e umas “cartchanolas”. E, foi tudo.
Lá gastámos as pesetas, os “duros” (5 pesetas), as “perras gordas”(10 cêntimos) e as “perras tchicas”(5 cêntimos).
Houve que voltar para casa, agora com o sol pelas costas e, com o aproximar do meio-dia, já abrasador. Passámos por um campo de algodão, para mim uma surpresa, em direcção ao Vale de Idanha, onde, surpresa das surpresas, nos esperava a guarda fiscal, já acompanhada de outros viajantes. Afinal a fronteira não estaria tão aberta assim, ou os guardas desconfiariam de algo. E ali ficámos, no prado verde, junto à ribeira, pergunta para cá, resposta para lá. Não trazíamos nada de especial. Então o guarda fiscal resolveu “engraçar” comigo. E porquê? Eu vestia o que hoje se chama uma “jardineira” e naquele tempo não era mais que um fato-macaco com peitilho. Pois, não é que o homem achava que aquilo tinha sido comprado na Zarza? Não sei se ficou muito convencido mas lá nos deixou passar. Agora, havia que trepar encosta acima, o calor já apertava e só ansiava por chegar a casa, na Quélhinha, e comer um “gaspatchinho” feito na “cunca”. Foi a minha primeira experiência contrabandística. Um canivete, de Albacete, e umas “cartchanolas”. E, olé!


A segunda experiência, bastante mais tarde, tinha a minha filha mais velha pouco mais de 1 ano, em Setembro, na sequência duma viagem a Salvaterra para mostrar à família a minha mulher, o meu rebento e, porque não, o meu “cotche volante”, um “Fiat 127”, que o dinheiro não dava para mais, na sua primeira grande viagem. Aconteceu que necessitava de leite para a minha filha e os leiteiros em Salvaterra, pasme-se, tinham entrado em greve. Coisa nunca vista!
Problema colocado, solução à vista! Vamos à Zarza!
Com o meu pai e uma prima minha, manhã cedo, era da praxe por causa do calor, saímos do Castelo e encosta abaixo, julgo ter-mos passado no “Moinho do Seco”. Chegados à Zarza, comprámos uma garrafa de leite e como “brinde” resolvi comprar uma pequena boneca, não daquelas espanholas, de louça, que faziam furor antigamente. Era apenas uma simples boneca para entreter a miúda. Teremos feito mais alguns avios que não recordo e iniciámos a volta. Como sempre, o sol era abrasador e a subida, tentando passar longe da “caseta”, sem grande motivo para isso, foi íngreme e cansativa.
Chegados a casa, descansámos e tristeza imensa, a minha filha nem para a boneca olhou, queria era uma caixinha, com alguns feijões lá dentro, para sacudir e ouvir o barulho. Mas, isto foi só o início. No dia seguinte retornámos a Lisboa e quando, já em Ponte de Sor, parámos para dar o leite à criança, que era feito dele? Tinha ficado em Salvaterra. Foi, mais uma experiência contrabandística, falhada!

Histórias de contrabando são imensas mas, como já escrevi, isto era pequeno contrabando. No outro, as estórias nunca são contadas de modo a que todos percebam. Têm que ser lidas nas entrelinhas!

(Imagens retiradas da internet)

4 comentários:

  1. E muitas dessas "estórias " têm de ser vividas ,principalmente quando os guardas resolviam "pegar".Bem haja por recordar algo desta época da nossa terra ...sim,porque hoje é só passar sobre o Erges e ...já está . Se trouxermos muita coisa ,melhor para os vizinhos espanhóis ...Quem arde somos nós !!!
    Muntas vesitas
    Quina

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  2. Olá João muito bom dia.Belas histórias sim senhor!!eram outros tempos e nós divertamo-nos á brava,não tive foi tanta sorte como o João com o tal bichinho, a que chamamos o vulgo lacrau(será assim ou não?)pois ao querer atirar com um sapato velho fui mordida por ele.Ainda quase que sinto as dores pois são horríveis.
    Quanto ao Tabu!!! lembro perfeitamente.Quanto ás bonecas espanholas,não tive a sorte de ter pois meus pais não eram dos mais abastados e em 1º lugar estava o comer e a educação,mas vi algumas colegas a deliciarem-se com elas.Mas pelos vistos nem toda a criança morria de amores por elas...a sua filhota foi exemplo disso.Em suma fico deliciada a ler estas suas(vossas)histórias.
    Faça o favor de ser Feliz (como dizia o nosso PESSA)
    Ana

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  3. Olá, Quina!
    Diz bem, mas essas "estórias" não se viviam só na fronteira da raia. Tive-as também quando andei embarcado. Engraçado, porém, era a Guarda Fiscal também actuar no percurso da terra para Castelo Branco, pois, por exemplo não se podia trazer o azeite, assim de qualquer maneira. podia ser que ele não tivesse sido declarado (penso que ao Grémio da Lavoura, ou similar) e depois lá se ia o imposto sobre a produção. Também ali à saída dos "cacilheiros", lá estavam eles, prontos a actuar. Até linhas para bordar eu trouxe de Matosinhos, para a minha mãe, porque não havia em Lisboa, e uma caixa de novelos já era contrabando!
    Agora, literalmente falando, quando regressamos de Espanha, estamos sujeitos a arder pois os carros vêm atestados de gasolina...

    Abraço,
    João Celorico

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  4. Olá, Ana!
    Eu cá irei contando as minhas histórias, enquanto puder e fizerem o favor de me aturar.
    O tal "bitcho alacrário" é isso mesmo, vulgo "lacrau", ou "escorpião" mas com pronúncia de Salvaterra. Que tive sorte sei eu...
    Que não haja dúvidas, a boneca que comprei não era dessas de louça pois se eu tivesse essa ideia, maior seria o desperdício...
    Quere-me parecer que o "Façam o favor de ser felizes" não era do Fernando Pessa, mas sim, do Raul Solnado. Porém, dum ou doutro, bem haja pelas suas palavras e façamos, sem favor, por ser felizes.

    Abraço,
    João Celorico

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