segunda-feira, 11 de julho de 2011

O dia começa no autocarro ! ( conclusão )

Mas, que é isto? Então o autocarro hoje mudou de itinerário? Ia fazer a pergunta, mas, olhando para os meus companheiros de viagem vejo que ou já mudou há alguns dias ou leram algum aviso, pois eles nem pestanejaram!
- Olha p’ra eles! Olha! Dizia uma voz no piso inferior e eu olhei mas não vi nada.
- Alguns já cá vieram pôr o carro ontem!
Continuo a olhar para a esquerda, para a direita e nada.
Ah, agora, também já vejo. É lá à frente. Dir-se-ia que Lisboa é a cidade do mundo com mais “táxis” (esta nossa mania das grandezas) e que por isso estavam ali aqueles todos, à espera de freguês.
Mas, não! Longas filas de “táxis” dispunham-se dum e doutro lado da rua, havendo ainda alguns nas ruas transversais. O problema é outro e maior. Estão ali perdendo umas horas ou talvez dias, quem sabe, para que possam ganhar mais uns cobres assim que dali sairem. Estão na “bicha” para aferição dos taxímetros. Entretanto, àquela hora, alguém está algures na cidade perguntando onde se meteram os “táxis”.
Levo a mão ao bolso e encontro ainda o porta-moedas que parece encolher-se, de tanto “apertão” levar. Qualquer dia ou passamos a usar uma malinha de mão ou pagamos tudo com cheque.
Entretanto, o autocarro retoma o itinerário antigo e pára mais à frente.
Entra aquele casal jovem, ainda bastante fresco e um seu amigo que faz habitualmente o papel de “bobo” do casal. Tenho a impressão de que ele sabe disso, mas a Vida tornou-o assim e ele não se importa. Vive feliz, assim parece.
Este casal, moderno, contrasta com o casal que vai lá mais atrás, já um pouco idoso. O marido, do género que já não se usa, não porque não devesse usar-se mas porque está ultrapassado pela descontracção da vida moderna, mantém-se sempre atento e venerador desde que entra até a esposa deixar de se ver, pois que sai algumas paragens antes dele. E a senhora não é das mais fáceis de satisfazer, pois que, regra geral, nunca se sente bem no banco em que inicialmente se sentou, sendo rara a viagem em que não muda de lugar duas a três vezes. O marido acompanha-a nessas mudanças como se se tratasse dum arrumador de cinema, sem protestos, zelando unicamente pela sua dama.
A viagem aproxima-se agora do termo, mas, falta ainda a fase crucial do Cais do Sodré. Verde! Vermelho! Traço vertical! Traço horizontal Outra vez verde! Vermelho! Traço vertical! É agora. O autocarro arranca! Tem no entanto que afrouxar pois o vermelho, mais à frente, ainda lá está. O verde está quase a aparecer. Já está! Arranca agora e parece que já não quer parar. O fim aproxima-se. Olho o rio, o Sol ( grande bola vermelha no horizonte ) desponta deixando perceber as silhuetas dos navios ancorados lá longe. Os “cacilheiros” mantêem a actividade febril das horas de ponta. Tenho que ver se ainda apanho o seguinte.
Mais uma curva, desvia-se um pouco para a esquerda, levanto-me e desço a escada. Alguém tocou já o sinal de paragem. Abrem-se as portas automáticas, saio e aspiro o ar fresco da manhã, misturando-me com a multidão que saiu do último “cacilheiro” comprimindo-se ao atravessar a rua e que de seguida, nervosamente, se aglomera na paragem do autocarro.
Não há dúvida, o dia já começou!

Lisboa, 19 / 3 / 1973


(Imagens retiradas da net: biclaranja.blogs.sapo. pt e freewebs.com)

6 comentários:

  1. Nuns versos feitos à pressa,
    Vou deixar a minha opinião,
    Sobre este texto verdadeiro
    Do nosso amigo João:



    É tão grande a correria
    Para poder ir trabalhar,
    Aquele que o transporte perde
    La ouvirá o chefe resmungar.

    D.José no seu cavalo
    Nunca viu coisa igual,
    A Praça atravessam a correr
    E nele não reparam, por sinal.

    Com tão belos monumentos
    Só pensam ir trabalhar,
    Não fazem pausa sequer
    Para na História reparar…

    Sempre a mesma rotina
    Sempre a mesma agitação,
    E vai-se esperando que um dia
    Melhores dias virão.

    Sentirão um dia
    Falta de tanta confusão,
    Talvez nesse dia passeiem
    Já de bengala na mão.

    Agora sim, com tempo a mais
    E sem pressa de chegar,
    Num qualquer banco de jardim
    Lisboa irão acarinhar…

    Cristina R. (a divagar…)

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  2. João , fiquei à espera da 2ª parte para lhe dizer que foi pena não ter concorrido . Transmite-nos bem no seu texto ,a "lufa lufa "desta vida que levámos e muitos ainda levam nesta cidade . Também eu fiz esse percurso correndo para o Tejo ,mas para apanhar o barco para o Barreiro...
    Parabéns pela narrativa ,tão actual
    (Permita.me que também estenda à Cristina os meus parabéns ...)
    Vesitas
    Quina

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  3. A mim resta,felicitar-vos pelas belas histórias de vida que aqui trazem,ao João,á minha amiga Cris e também á Idanhense,(belo video sobre a Idanha)embrenhamo-nos nestas narrativas e até nos esquecemos,do menos bom que por vezes nos vai acontecendo no dia a dia...
    Desejo-vos o melhor e continuem.
    De coração um abraço
    Ana

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  4. Olá, Cristina!
    Só para ter um comentário destes, valeu a pena ter tirado este texto da gaveta. Bem haja!
    São memórias que, de certo modo, continuam actuais. A Vida passa a correr e por vezes nem reparamos nela. Eu tentei agarrar um bocadinho, se o consegui e, ainda por cima, o posso mostrar aos amigos, fico satisfeito com isso!

    Abraço e até sempre,
    João Celorico

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  5. Olá, Quina!
    Ainda bem que a não desiludi, no entanto, como "na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma", apesar de eu não ter concorrido, estou agora a receber o meu prémio, transformado em palavras de alguém que disto gostou, o que muito me alegra.
    Esta narrativa, que diz tão actual, só foi possível porque eu já estava liberto da vida académica que, até ali, ainda era mais complicada. Começava num autocarro, ainda mais cedo (às 7 da manhã) até ao Instituto, em Cabo Ruivo, donde saía às 16h em direcção ao Terreiro do Paço, para apanhar o cacilheiro; autocarro, em Cacilhas, para o Estaleiro, donde saía à meia-noite; retornava a Cacilhas, Terreiro do Paço e eléctrico até casa, onde chegava depois da 1h da noite. No outro dia repetia a dose e tinha que inventar tempo para estudar!
    Mas, garanto, não custava nada. Hoje, até eu me admiro! Havia alguns que passavam bem pior!
    Bem haja, pelas suas palavras.

    Abraço,
    João Celorico

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  6. Olá, Ana!
    Ainda bem que vai gostando destas histórias. Será sempre bem vinda e se as mesmas lhe servem para esquecer um pouco desta realidade que nos apoquenta, tanto melhor. Fico satisfeito com isso!
    Bem haja,

    Abraço,
    João Celorico

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