quinta-feira, 19 de novembro de 2015

A 10ª Repartição da AGPL ... existiu ! ( 4 )


Eu e … a 10ª Repartição da AGPL

Para terminar esta minha dissertação vou deixar alguns “flashes” do que foi a minha vida na AGPL.

O primeiro dia, primeiro trabalho, primeiro “desastre”!
Numa segunda-feira do mês de Junho de 1956, talvez meados do mês, contrariado mas obedecendo ao prometido a meu pai, apresentei-me ao trabalho como “moço de picagem” e, continuando a tradição iniciada no “Argibay”, o meu primeiro dia foi marcado por um “desastre”.
 
Foi o caso de que o encarregado, José Sotero, logo que me apresentei ao serviço, me pôs uma picadeira nas mãos e me mandou, com outros, para o “Cabo Espichel”, rebocador que estava na muralha do lado de lá. Uma vez na embarcação, foi-me dito para picar a parte de fora da chapa da borda falsa, a ré. Saltei a borda falsa e pés assentes no verdugo, mão esquerda bem segura à borda e picadeira na mão direita, eis que após uma pancada mais forte, a picadeira parece tomar vida e salta para a água, indo fazer companhia aos peixinhos. Foi prejuízo? Antes ela que eu que, ao tempo, não sabia nadar!
Filho do contínuo do chefe, houve alguma complacência comigo e o caso ficou por ali!

Segundo trabalho
Esquecido o problema inicial, fui escalado para raspar, picar e pintar, o convés da cábrea “António Augusto de Aguiar”. O convés era direito e de boa dimensão, portanto tudo correu normalmente.

Terceiro trabalho
A mim e outro colega foi-nos atribuído o trabalho de limpeza das cavernas dum batelão que se encontrava na doca nº 5 do Estaleiro da CUF.

Nesse dia fiquei a saber como se preparava a iluminação que devíamos utilizar durante o trabalho no interior dessas cavernas. Era um processo fácil! Limitava-se a produzir acetileno. Num reservatório metálico, redondo, espécie de copo, deitávamos umas pedras de carboneto de cálcio, vulgo “carbureto”, cobríamo-las com água e tapávamos com uma campânula na qual existia um bico para saída do gás assim produzido, o acetileno. Depois bastava um fósforo para acender e assim iluminarmos o local de trabalho.
E ali estávamos, calor cá fora mas, lá dentro, depois do trabalho feito, estava-se bem e passámos o resto da tarde descansando, à luz da lamparina! Por vezes ainda saíamos cá fora para nos dessedentarmos num fio de água salobra que, qual bica, corria na parede, a vante da doca.

Quarto trabalho
Fui escalado para pintar a parte interior do bico de proa do “Serra de Portalegre”. Até aí tudo bem. Porém, o rebocador saiu para ir a Xabregas fazer um qualquer serviço e eu ali no bico da proa, baixado a pintar. O rebocador a subir e descer, apesar da pouca ondulação, o cheiro da tinta a ajudar e eu a ter de me levantar para sorver um pouco de ar fresco. Quando, após o regresso, o rebocador atracou, o meu trabalho estava acabado mas eu estava pouco menos enjoado que um “carapau”!

Quinto trabalho
Este trabalho, terá durado talvez 2 semanas. Foi na draga “Guadiana”. Desta vez fomos escalados dois, eu e o “Lambreta”. O trabalho começou por ser, cimentar os tanques de água doce e consistia em “pintar” ou talvez chapinhar interiormente com cimento os tanques. Depois fomos pintar um paiol. Acesso por uma porta de visita, colocámos uma escada e uma vez lá dentro, trincha ou rolo numa mão lá íamos pintando. Porém, como era uma pintura num interior, a renovação de ar era pouca e o cheiro da tinta era intenso pois as tintas daquele tempo eram muito mais agressivas do que as actuais pois possuíam mais chumbo, isso obrigava-nos a vir cá fora tomar ar. Tomar ar e não só porque, quando fazíamos pinturas, tínhamos direito a beber leite que diziam proteger a saúde e os pulmões. Hoje está provado que apenas poderá servir como alimento e não como protector contra a inalação de gases emanados pelas tintas. Esse leite era preparado por nós. Havia cafeteiras de, talvez, cerca de cinco litros, deitava-se água a ferver e uma lata de leite condensado e aí estava o leitinho para os meninos!
Continuando, a pintura do paiol progredia com alguma lentidão, o que desagradava ao contramestre da draga, homem pequenino e que gostava de apoucar-nos. Assim, ele próprio ia para dentro do paiol e desatava a pintar que era um mimo, só para nos dar o exemplo. Claro que ele não sabia com quem se metia! Apanhámos-lhe o ponto fraco e o homem pintou-nos quase o paiol por completo. Só para nos ensinar!
Muito ufano, dizia que a sua filha era um “cérebro” extraordinário pois até já andava no 2º ano do Ciclo Preparatório. Não era como os “calões” e “vadios” da picagem. Fui ouvindo, atentamente, e disse-lhe que eu já tinha passado para o 5º ano do curso industrial e não andava a fazer propaganda. Começou por não acreditar mas depois “amansou” e tivemos um resto de trabalho calmo e sem problemas.

Sexto e último trabalho na Picagem
Fui chamado da draga “Guadiana” para fazer parte duma “brigada” de ataque ao pontão de embarque da Trafaria.
Às 08.00h, embarcávamos numa lancha, a “Olivais” ou a “Bugio”, rumo à Trafaria. Lá chegados, qual condenados das galés, descíamos ao porão e tratávamos de movimentar as pedras que serviam de lastro, dum lado para o outro, para nos permitir actuar na zona que ficava livre. Essa “actuação”, então, consistia em raspar alguma ferrugem e depois cobrir paredes e tecto com “coaltar”, tinta de alcatrão. Dito assim, não parece nada de especial, só que ao calor que se fazia sentir cá fora e lá dentro do porão, acresciam a inalação dos gases da tinta e os pingos da mesma que nos caíam no fato macaco e na própria pele. Esses pingos, queimavam tecido e a pele, pelo que as manchas na cara eram normais. A lavagem da roupa era um suplício para a minha mãe que, antes da lavagem, tinha que aplicar azeite nas manchas de alcatrão, para o diluir, não evitando, no entanto, que o tecido, queimado e enfraquecido, rapidamente rompesse e abrisse buraco. Cerca do meio dia regressávamos a Lisboa, para o almoço, depois repetíamos a dose da parte da tarde, regressando às 17.00 horas. E foi assim, pelo menos durante uma semana, finda a qual tive a grata notícia de que o meu período de “condenado às galés” terminava ali e na segunda-feira seguinte me devia apresentar da oficina da Caldeiraria.

Uma semana, na Oficina de Caldeiraria
A minha permanência nesta oficina, quase não deu para aquecer! Como auxiliar do João, lá fui aprendendo a acender o maçarico de oxi-corte, a rebarbar algumas peças e a tomar contacto com a “segunda-feira” (uma marreta), que eu nem quase levantava do chão quanto mais utilizá-la!
E assim, chegou ao fim a semana e, “eureka”, recebi a ordem para me apresentar na oficina de serralharia na semana seguinte.

 
Enfim, na Oficina de Serralharia!
Fui, então, colocado como ajudante do José “Barreirense”. No entanto, para todos os efeitos, eu continuava a ser um “Moço de Picagem”!
Estávamos ainda no Verão e a Caldeiraria tinha um trabalho que era fabricar os elos da cadeia dos baldes duma draga. Logo fui requisitado e estive, no largo fronteiro à oficina quase uma semana a marcar os malhais, com cércea, riscador, martelo e punção de bico.
 
Neste mesmo largo, em Fevereiro de 1957, estaria em aprestamento o pontão que receberia a galeota transportando a rainha Isabel II e seu séquito.

Entretanto ia aprendendo a afiar ferros de corte e a ter algumas pequenas incursões no torno pequeno e no torno da carpintaria.

Chegou o inverno, o frio apertava e até de casaco vestido eu tinha de andar. E o inverno não ia passar sem que aparecesse, nos inícios de 1957, uma moléstia, a “gripe asiática”! Era ver o pessoal, um a um, a serem atacados pela dita. Começava por uma ligeira dor de cabeça, andar um pouco azamboado e no dia seguinte já havia mais um que não aparecia ao trabalho. Eu, como os outros, também fui apanhado. Sei de quem, ainda em Setembro, não se livrou dela!

Com o tempo fui-me entrosando no trabalho que de mim necessitavam e comecei a ser “requisitado” pelos mais variados colegas para este ou aquele “trabalhinho”.
Assim, o tal contramestre da draga “Guadiana”, agora já me conhecia e pedia os meus préstimos para que lhe fizesse um arranjo numa tampa dum ferro de engomar, a carvão. Pelo que me foi dado observar, o ferro de engomar estava mesmo a pedir sucata, mas o homem não desistia e lá teve que ser.

O Saraiva, que tinha estado no sanatório, aprendeu lá a fazer uns “naperons” e logo tudo se agradou deles. Conclusão, tive uma “encomenda” duma série de agulhas em alumínio, tipo das que servem para arranjar redes de pesca. Feitas as agulhas, passou a “febre” à maioria dos interessados. Fazer acabamento dum martelo de bola, para o Vasco, torneiro, foi mais uma encomenda. Não tiveram conta os cabos para limas. Bastava-me pegar num vergueiro e uma goiva e no torno da carpintaria lá iam eles saindo para serem acabados com uma anilha cortada dum tubo de latão.

Chegámos ao mês de Abril e começou a falar-se dos Jogos Culturais do Pessoal da AGPL, comemorando o Cinquentenário da AGPL, que seria no dia 7 de Maio.
 
Perante tal facto, logo alguns entenderam que era chegado o momento de mostrarem as suas habilidades. Eu não fugi à regra, martelando chapa para um lindo cinzeiro mas tive que colaborar na feitura das “habilidades” dalguns outros.


Foi então que em Setembro, ao José Bispo, torneiro, convalescente dum acidente em que fracturou um braço, lhe foi pedido para tornear umas flanges em ferro fundido. Um “biscate” encapotado! Como ele não estava operacional e eu já era “pau para toda a obra”, lá fui “convocado”. Um pouco contra vontade, fui fazer o trabalho que até meteu horas extra e no dia 19 de Setembro, enquanto ia torneando aproveitava para ir ouvindo, no aparelho já antigo que o Jacinto tinha sobre a sua bancada, o relato do jogo Sevilha, 3 – Benfica, 1, para a Taça dos Campeões Europeus. Desse jogo recordo o defesa central do Sevilha, o Campanal, que parece ter “aviado” bem, tanto o Ângelo como o “Zezinho”, os “maus” do Benfica.
Esse trabalho, em horas extra, não me foi pago em dinheiro mas em folgas. E foi por isso que numa quarta-feira, depois de ter respondido a um anúncio do Diário de Notícias, prometendo um bilhete para um filme com a Sophia Loren e o ter recebido, lá fui direito ao “Condes”.
A meio do filme faltou a luz e julguei que não ia ver a Sophia. Esperou-se bastante tempo mas lá vimos o filme.

Por esta altura, em Setembro, já eu andava com a cabeça no ar porque já me tinha inscrito para admissão no Estaleiro Naval da CUF e por isso também a minha pouca vontade para fazer o trabalho de torneiro.

Estava farto de fazer pequenas coisas para os outros, de tal modo que não tinha paciência para fazer nada para mim e isso começava a cansar-me. Eu que, ao tempo, só queria ser um serralheiro mecânico e não um “topa a tudo”, hoje vejo que não me fez nada mal.

Terminado este trabalho, foi altura de comunicar ao pessoal que, contrariando agora a vontade do meu pai que gostaria de me ver como funcionário público, a minha vida ali já tinha acabado e na 2ª feira, dia 1 de Outubro, eu estaria à “disposição” deles mas ali ao lado na Oficina da Mecânica do Estaleiro Naval da CUF!
 
 
 
 

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